Utopias de um beato qualquer - Parte I

sexta-feira, 12 de março de 2010

O Jornal do Brasil, no dia primeiro de fevereiro de 1981, publicou um caderno especial intitulado “A Chacina do Caldeirão”1. Aos leitores cariocas deve ter causado certo estranhamento essa matéria, que falava de uma “conspiração do silêncio” sobre o episódio ocorrido no Ceará nas décadas de 1920 e 1930. O caminho mais fácil para quebrar esse estranhamento foi o de associar a experiência do Caldeirão a uma outra, mais próxima dos leitores cariocas. Assim, segundo reportagem publicada no mesmo jornal em 13 de fevereiro de 1982, Caldeirão seria um “Canudos Menor” e o tal beato Lourenço teria reeditado Antônio Conselheiro. 2 Mas se essas histórias, do Caldeirão e do beato José Lourenço, eram pouco conhecidas dos leitores do Jornal do Brasil, para os nordestinos era diferente. O folclore, a literatura de cordel e mesmo a tradição oral se encarregavam de não deixá-las cair no esquecimento. Especialmente na região do Cariri, ao sul do estado do Ceará, as histórias sobre o beato Lourenço, seu boi Mansinho e a comunidade do Caldeirão povoavam o imaginário popular. A reportagem do jornal do Brasil, portanto, alçava ao plano nacional a história desse beato, permeada de mitos e lendas, que tanto fascinava os moradores do Cariri. Uma história em que religiosidade popular e política se fundem, e que se inicia em fins do século XIX.



A trajetória pública do beato começa na década de 1890, quando se tornou discípulo do Pe. Cícero Romão Batista e, com o seu auxílio, fundou uma comunidade no sítio Baixa D’Antas, próximo à Crato, no Vale do Cariri. Ali permaneceria até o ano de 1926, quando é forçado a abandonar a propriedade e rumar para outro sítio, conhecido como Caldeirão dos Jesuítas. Lá Zé Lourenço organizaria outro grupo, que seria duramente perseguido pelas autoridades policiais nos anos de 1936 e 1937. Nesse ano foi obrigado a deixar o sítio do Caldeirão e se dirigiu para Exu, cidade vizinha no estado de Pernambuco. Organizou ali uma outra comunidade, de menor visibilidade, seguindo os mesmos princípios das de Baixa D’Antas e do Caldeirão. Viria a falecer no ano de 1946. Ao longo de toda sua trajetória, o beato José Lourenço parece ter encarnado, através do trabalho disciplinado com a terra, o desejo e a esperança dos sertanejos por uma vida mais justa ou menos desigual. Suas comunidades forneciam, portanto, uma outra possibilidade de vida, em que a fartura e a abundância substituíam a penúria e a seca dos sertões nordestinos.

A rigor, as fontes que permitem resgatar a trajetória de José Lourenço podem ser divididas em dois conjuntos: um primeiro - compreendendo reportagens de jornal e um relatório policial compilado em livro - traduz uma visão oficial sobre o beato, no mais das vezes endossando a idéia de fanatismo. O segundo conjunto de fontes - formado por entrevistas de contemporâneos e ex-moradores das comunidades lideradas pelo beato, folhetos de literatura de cordel, um romance, e duas peças de teatro -, permite acessar a forma como o imaginário popular construiu a personagem de José Lourenço.

Todavia, identificou-se que ambos os conjuntos documentais privilegiam um momento específico da trajetória de Zé Lourenço: a comunidade do Caldeirão. Assim, esta pesquisa buscou um deslocamento de olhar, visando recuperar a passagem do beato de sua vida privada para o mundo público. Tornou-se, portanto, necessário traçar um relato biográfico de José Lourenço focando especialmente o momento em que ele ascendeu à vida pública, através da comunidade de Baixa D’Antas.

Rumo a Juazeiro
José Lourenço Gomes da Silva, o futuro beato Zé Lourenço, nasce em Pilões de Dentro, na Paraíba, para alguns em 1870, para outros em 1872. 3 Filho de Lourenço Gomes da Silva e Tereza Maria da Conceição – negros alforriados -, ele aprendera desde cedo com seus pais o trabalho com a terra e com o gado. Por volta de 1886, o ainda jovem Lourenço fugiria de casa, com medo de uma surra que o pai lhe prometera. Segundo depoimento de João da Silva, que conviveu durante muito tempo com Zé Lourenço, assim se dera o fato:
“Porque o pai dele (José Lourenço) era muito grosseiro com ele. Era desses véi carrasco. (...) Aí um dia ele chegou em casa. Só porque ele foi na casa de uma pessoa conhecida de lá. Aí acontece que o irmão dele disse assim: Zé, teu pai vai te dar uma surra de matar, pois ele soube que você foi pra casa de fulano (...) Aí ele saiu. Passou foi tempo fora de casa (...)”4

A severa pedagogia do cipó e do marmelo utilizada pelo pai incomodara Zé Lourenço, e ele decidira tomar seus rumos próprios. Aparentemente, seu primeiro destino após sair de casa foi a região de Serraria, no mesmo estado da Paraíba. Ali permaneceria durante um tempo trabalhando como vaqueiro, amansando cavalos, jumentos e burros. As condições de trabalho não eram as melhores, mas José Lourenço conseguia se manter. Segundo João da Silva: “Aí, ele, lá mesmo onde ele trabalhava, ganhou dinheiro. Comprou um cavalo muito bom, bem arreiado. Aí roupas boas, ternos bons...”5.

Alguns anos mais tarde ele resolveria voltar a Pilões de Dentro para rever seus familiares. Lá chegando não os encontrou e teve notícia de que haviam partido rumo à Juazeiro do Norte, no Ceará. Assim como milhares de nordestinos, seus pais tinham seguido em romaria, buscando a benção do Padre Cícero. Com efeito, após os supostos milagres ocorridos naquela região no ano de 1889, ela se transformou em uma espécie de Meca sertaneja. A hóstia que teria se transformado em sangue na boca da beata Maria de Araújo era vista como um sinal divino. Milhares de desvalidos, doentes e flagelados acorreram, assim, para Juazeiro, acreditando que ali se faria a redenção; e a benção do Padim Ciço lhes daria a salvação eterna. 6

José Lourenço, determinado a reencontrar sua família, juntou-se a um grupo de romeiros que partia de Pilões de Dentro. Durante a viagem, à noite, incomodava-se com os benditos cantados pelos romeiros: “Ele achava aquilo muito esquisito. Porque ele num tinha costume, negócio de bendito, essas coisas assim. Ele num tinha costume”7. Chegando em Juazeiro, logo separa-se dos romeiros e vai à procura de sua família. Sem grandes dificuldades consegue encontrar a casa onde seus pais moravam.

A chegada em Juazeiro do Norte, por volta do ano de 1890, daria novos rumos à trajetória do jovem Lourenço. Encontrara uma cidade em rebuliço, o misticismo e a religiosidade popular fervilhavam através da figura do Pe. Cícero Romão. Em pouco tempo Lourenço fez amizade com um grupo de beatos. “Aí o pai achava ruim. Pensava que ele andava por ambiente, não sabe? Os ambiente ruim”.8 Contrariando a vontade do pai, José Lourenço tornou-se beato. Isso significava, à época, a opção por um modo de vida simples, pautado pelos princípios da religiosidade popular. Além disso, o beato “veste-se à maneira de um frade: uma batina de algodão tinto de preto, uma cruz às costas, um cordão de S. Francisco amarrado à cintura (...)”.9

Ao assumir a condição de beato, José Lourenço tornou-se celibatário e passou a viver de esmolas e caridades. Além disso, em pouco tempo ingressou também em uma ordem de penitentes. Esses se reuniam à noite - em capelas, cruzeiros, cemitérios ou em cruzes de estrada – e praticavam rituais de auto-flagelação como forma de purificação do espírito. Imbuído do espírito religioso de Juazeiro, em pouco tempo José Lourenço tornou-se um discípulo do Pe. Cícero. O poeta Abrãao Batista, em seu folheto de cordel História do beato José Lourenço e o Boi Mansinho, recria como teria se dado o encontro entre José Lourenço e o Pe. Cícero:

“Padre Cícero disse assim
há muito que o esperava
você vem pra essa terra
ajudar-me nessa lavra
e cuidar do meu povinho
que a ignorância entrava
(...)
Padre Cícero deu-lhe aí
ajoelhado, uma cruz
dizendo: José Lourenço
só volte aqui com Jesus
vá descontar as maldades
Pra achar a eterna luz”10

A formação do beato
Em pouco tempo a experiência de vida em Juazeiro do Norte operara uma transformação em José Lourenço. Não era mais aquele jovem rebelde, que fugira de casa com medo do pai. Nem mesmo aquele homem que se irritara com os cantos dos romeiros que lhe ajudavam a achar sua família. Seu coração fora tocado pelo clima religioso da cidade. Tornara-se o beato Zé Lourenço, discípulo do Pe. Cícero, e passou a mover-se não mais em função de seus interesses, mas pelos ideais de caridade e piedade. Seu mestre, o Padim Ciço, o aconselhara a ocultar-se em penitências para purificar-se. Assim o beato Lourenço fez. Não se sabe ao certo quantos anos ele permaneceu oculto. 11 Segundo o poema A Santa Cruz do Deserto, de José Bernardo Batista, o beato “se retirou de repente/ Internou-se nas montanhas/ Foi viver ocultamente/ Fazer orações/ Na vida de penitente/ (...) Assim passou muitos anos/ Pelos bosques internado/ Até quando meu padrinho/ Mandou a ele um recado (...)”12


Pe. Cícero percebera, no convívio com José Lourenço, sua capacidade de liderança e sua vocação no trato com a terra. Aconselha, então, o beato a largar a penitência oculta e voltar a trabalhar nas roças. Em seu poema, Abrãao Batista recria o diálogo entre o Padim e o beato:

“Ele disse pra Zé Lourenço:
não quero mais você assim
lhe afirmo com clareza
e responda pra mim
a penitência é oculta
e hoje ponha-a no fim

Eu pergunto se as árvores
Com você elas aprendem?
José Lourenço disse: não
Não aprendem nem entendem
- E as árvores do céu amiguinho?
- Não senhor, nem se ofendem

Eu pergunto José Lourenço
Se alguma cousa ensinou
Aos bichinhos daqueles matos
E se com as pedras falou?
Zé Lourenço disse: Padrinho
São tão mudas como estou.

Então meu caro amiguinho
Não o quero dessa maneira
Você vem pros seus irmãos
Ensinar aqui na feira
Vai morar em Baixa Danta
Orientar a cabroeira”13

Seja seguindo os conselhos de Pe. Cícero seja por decisão própria, o fato é que por volta do ano de 1895 o beato Lourenço larga as penitências ocultas e retorna a Juazeiro. Mas tanto o beato quanto sua família não se adaptaram à vida naquela cidade. Haviam sido criados nas fazendas, trabalhando com a terra e cuidando do gado, e não se acostumavam à vida urbana de Juazeiro. Com a ajuda do seu Padim, o beato consegue arrendar uma porção de terras de um sítio chamado Baixa D’Antas, próximo à Crato, cidade vizinha de Juazeiro. Parte, então, para Baixa D’Antas acompanhado de sua família e de um grupo de trabalhadores rurais. Segundo depoimento de Marina Gurgel, que morou no sítio do Caldeirão, Pe. Cícero teria aconselhado Zé Lourenço:
“José, eu vou lhe botar num sítio pra você trabalhar, porque tá me chegando muita gente, muita gente pode ficar aqui na cidade, gente de negócio, mas esse povo da agricultura, é tudo que tem em dia pra a agricultura. Então eu vou lhe botar em Baixa D’Anta. Você vai trabalhar e todo o povo que chegar para a agricultura eu mando para lá”.14

A comunidade de Baixa D´Antas
O terreno em Baixa D’Antas, para onde o beato se dirigia, era até então uma terra “árida e encapoeirada”15, improdutiva, típica da caatinga dos sertões. Lá chegando, Zé Lourenço tratou de organizar os trabalhadores que haviam o seguido para tornar a terra produtiva. Surgia assim, em Baixa D’Antas, a primeira comunidade liderada por José Lourenço, que se manteria até o ano de 1926. Em pouco tempo, através do trabalho coletivo e disciplinado, a aridez de Baixa D’Antas transformava-se em um “belo pomar, otejando (sic) em pleno desenvolvimento, plantados alguns milhares de laranjeiras, mangueiras, jaqueiras, limeiras, coqueiros, limoeiros, abacateiros, mamoeiros, bananeiras e cafeeiros, ao lado de uma bem cuidada cultura de algodão, cereais e de outras diferentes qualidades de plantas e hortaliças”.16

José Lourenço destacava-se na liderança da comunidade. Não apenas pelas habilidades que tinha no trabalho com a terra, mas também como guia espiritual. O beato ia periodicamente à Juazeiro e mantinha uma relação próxima com o Pe. Cícero. Os moradores de Baixa D’Antas passaram a vê-lo como um conselheiro. Transformara-se no “padrinho Lourenço”. Seu espírito caridoso atraia cada vez mais romeiros que chegavam a Juazeiro buscando a benção do Pe. Cícero. Em Baixa D’Antas não havia propriedade, todos trabalhavam e todos colhiam os frutos. Segundo depoimento de um contemporâneo, lá “juntou um batalhão de 2000 pessoas. Aí trabalhava muito homem trabalhador. Dava de comer ao povo e fazia as orações deles (...)”17. Não havia critérios para fazer parte da comunidade de Baixa D’Antas, bastava que se estivesse disposto a levar uma vida pautada pela fé e pelo trabalho.

O sítio prosperou com relativa tranqüilidade até o ano de 1914. Nesse ano Juazeiro do Norte virou palco de uma batalha entre tropas enviadas pelo governador Franco Rabelo e jagunços liderados por Floro Bartolomeu. O conflito ficou conhecido como Sedição de Juazeiro ou Guerra de 1914.18 Pe. Cícero, importante aliado político de Floro Bartolomeu, convocava seus fiéis para a defesa de Juazeiro. José Lourenço também foi para essa região durante o conflito, mas não se envolveu diretamente com os combates. Como em Baixa D’Antas havia fartura, o beato limitou-se a fornecer alimentos aos jagunços que lutavam em nome de Floro Bartolomeu e Pe. Cícero.

As tropas rabelistas foram derrotadas em Juazeiro, mas não deixariam de fazer estragos nas redondezas. O sítio Baixa D’Antas, enquanto o beato se encontrava em Juazeiro, foi invadido. As benfeitorias que permitiam a fartura da comunidade foram destruídas. As casas foram incendiadas. As atrocidades cometidas mantiveram-se vivas na memória de Antônio Inácio da Silva, seguidor do beato:

“o velho [Bernardino] ia saindo com duas crianças escondidas num balaio. Por que matavam tudo. E viu de longe sua filha ser cortada no meio, de duas bandas. O velho não podia fazer nada. Viu a filha ser cortada de longe e fugiu com os dois netos. O fogo foi grande. Na Baixa Dantas a folha de marmeleiro ficou tostada”.19

Zé Lourenço retornaria a Baixa D’Antas após o fim dos combates e não se abalaria com a destruição encontrada. Reorganizou a comunidade e, em pouco tempo, a fartura voltou a reinar no local. Fartura essa que transformou o beato em uma figura pública. Os coronéis da região se incomodavam com a comunidade liderada por José Lourenço. Isso porque Baixa D’Antas passou a atrair a mão-de-obra que antes se dirigia aos latifúndios. Começaria então uma campanha para diminuir o prestígio de José Lourenço, e as acusações de fanatismo e fetichismo não tardariam a tomar as páginas da imprensa cearense.

Boi Mansinho
Na década de 1920, um episódio traduziria de forma especial essa campanha desencadeada contra Zé Lourenço: a história do Boi Mansinho. Tudo começou quando, por volta do ano de 1900, Pe. Cícero recebeu de presente, do industrial alagoano Delmiro Gouveia, um boi da raça zebu. Não tendo onde criar o animal, e demonstrando confiança em seu discípulo, ele deixa o boi sob os cuidados do beato Zé Lourenço. Pelo seu temperamento calmo, logo ele passa a ser chamado Mansinho. Como se tratava de um “presente” do Padim Ciço, os moradores de Baixa D’Antas tratavam com grande apreço o animal. Além disso, por ser um gado de raça, em pouco tempo Mansinho, usado como reprodutor, melhoraria o rebanho local, até então formado apenas por gado “pé-duro”, ou seja, um gado resistente, mas de pouca categoria para a produção de leite e carne.

Depois da Sedição de Juazeiro, os adversários políticos de Floro Bartolomeu e do Pe. Cícero se aproveitaram de um boato surgido em torno do boi Mansinho para divulgar a idéia de que José Lourenço e seus seguidores eram fanáticos e adoravam o animal como um santo.20 Circulou a notícia de que os moradores de Baixa D’Antas consideravam o Boi Mansinho como milagreiro, utilizavam sua urina na cura de doenças e raspas de seu casco como amuleto. O bispado de Crato, incomodado com a influência desse padre na região, ajudou a propagar essa idéia e passou a pressionar Floro para dar fim àquele “antro de fanáticos”. Novamente, como na Sedição de Juazeiro, uma disputa política alheia à comunidade de Baixa D’Antas, interferiria na trajetória de José Lourenço. Ele passou a ser o principal acusado de estimular o fetichismo em torno do “Boi Santo”.

Chega à Baixa D’Antas, em 1923, a notícia de que Floro Bartolomeu mandaria prender o beato. Esse resolve, então, apresentar-se voluntariamente ao político. Na peça de teatro A Irmandade da Santa Cruz do Deserto, Oswald Barroso recria, satiricamente, o encontro entre os dois:

“BEATO: Dr. Floro, pronto Dr. Floro, aqui estou.
FLORO: Com quem é, homem, que eu estou falando?
BEATO: O senhor está falando com o Beato José Lourenço, da Baixa D’Anta, preto, alto, desilustre, incapaz de estar diante de vossa presença.
FLORO: Mas homem, com quem é mesmo que eu estou falando?
BEATO: O senhor está falando com o Beato José Lourenço, da Baixa D’Anta, preto, alto, desilustre, incapaz de estar diante de vossa presença.
FLORO: Com quem é, homem, que eu estou falando?
BEATO: Com o Beato José Lourenço, alto, preto e desilsutre, incapaz de estar na vossa presença!
FLORO: Pois, negro, você está preso!”21

De fato, ao apresentar-se a Floro Bartolomeu o beato é preso. Não bastasse a prisão sem um crime que a justificasse, Floro ainda mandaria matar o Boi Mansinho em frente à prisão. A carne do animal foi oferecida ao beato José Lourenço, que se recusou a comê-la. Ele teria passado “pra sete, oito dias, nove dias, dez dias e descambou, foi para dezessete dias...! Sem comer...! O soldado era quem comia. (...)”22

Em discurso na Câmara Federal, no dia 13 de setembro de 1923, Floro Bartolomeu deixaria registrada sua versão dos fatos:

“Depois das perseguições religiosas ao Padre Cícero, começaram a fazer circular que Zé Lourenço, não tendo mais vida de penitente, abusava da crendice do povo, apresentando o ‘touro como autor de milagres’.
Então se dizia que a urina do animal era por ele distribuída como eficaz medicamento para tôdas as moléstias; que dos seus cascos eram extraídos fragmentos para, em pequenos saquinhos, serem pendurados no pescoço, como relíquias, à moda do Santo Lenho; que todos se ajoelhavam em adoração diante do touro e lhe davam de beber mingaus e papas; enfim, tudo quanto uma alma perversa possa conceber.
Quando se procurava apurar a verdade, ninguém sabia informar, a começar pelos proprietários do sítio onde Zé Lourenço residia e trabalhava como rendeiro.
Os padres, não sei sob que fundamento, repetiam essas banalidades.
(...)
Não sei quem informou o mesmo Zé Lourenço de que eu ia mandar prendê-lo.
O negro, supondo exata a notícia, no terceiro dia apareceu em minha residência. Foi quando o conheci pessoalmente.
Mandei prendê-lo, e, apesar das suas declarações, dêle obtive a promessa de ir morar no Juazeiro, para evitar os boatos.
Ao mesmo tempo fiz vir o touro e, de acordo com o Padre, vendi-o para corte, sob a condição de ser abatido em frente à cadeia.
Ao chegar a notícia do Crato, de que Zé Lourenço não mais voltaria ao sítio Baixa Danta, indo fixar residência no Juàzeiro, recebi diversos telegramas, cartas e visitas de homens respeitáveis da cidade vizinha, empenhando-se para que eu não retirasse Zé Lourenço do seu sítio, tal a falta que êle fazia aos proprietários, pelo auxílio que lhes prestava nos trabalhos de agricultura, e em outros préstimos.
(...)
Consenti na volta do negro ao seu sítio, e assim terminou a história ‘das mil e uma noites’ do touro Mansinho” 23

Em meio às disputas políticas de Floro Bartolomeu, ou à desavença religiosa entre o Pe. Ciçero e o Bispado de Crato, José Lourenço tornara-se o bode expiatório. Na realidade, com a prisão de Zé Lourenço e a morte do Boi, Floro buscava desfazer a imagem de que era um deputado defensor de “fanáticos e cangaceiros”. Somente após a interseção do Pe. Cícero e de algumas figuras notáveis de Crato, o beato é solto e retorna a Baixa D’Antas. Nas memórias daqueles que conviveram com José Lourenço, restou a indignação quanto ao episódio:

“Vi no dia em que Doutor Floro mandou matar o boi. Obrigaram o pobre negro a ficar na grade olhando. Quando disseram ‘vamos matar o boi’, deram uma pancada na cabeça, aí eu corri, não quis vê mais, mas que muita gente não quis comer a carne do boi. Eles estavam dando, mas ninguém queria. “É do boi de Zé Lourenço, eu não quero.”24

Mas José Lourenço não guardaria ressentimentos de Floro Bartolomeu. Dizem mesmo que, à época em que esteve preso, ficou amigo do político, passando, depois de solto, a almoçar na casa dele quando ia à Juazeiro.

O início do Caldeirão
De volta à Baixa D’Antas o beato encontraria parte de suas lavouras destruídas, pois haviam soltado uma boiada na roça.

“Aí ele coçou a cabeça. Aí pensou assim: vou procurar me indenizar com meus esforços. Vou trabalhar de novo. Aí começou a trabalhar. De novo trabalhou, trabalhou. Num tava do mesmo jeito, o terreno lá, muita coisa (...)”25

Todavia, seus esforços de reerguer a comunidade seriam interrompidos em 1926. Nesse ano, João de Brito, proprietário do sítio arrendado pelo beato, resolvera vender sua propriedade. O comprador não aceitara a permanência da comunidade naquela porção de terras. Sem resistir, o beato, acompanhado de seus seguidores, rumou, então, para Juazeiro do Norte.

Reconhecendo a importância da experiência liderada por José Lourenço, o Pe. Cícero o autoriza a se assentar em outro sítio próximo a Crato, que seria de sua propriedade, conhecido como o Caldeirão dos Jesuítas.

Ali, o beato iniciaria uma nova aventura, através da comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, que teria repercussões nacionais e o levaria àquelas páginas do Jornal do Brasil.


1 - Jornal do Brasil, 01/02/1981.
2 - Jornal do Brasil, 13/03/1982.
3 - Não foi possível encontrar documentos que comprovem a data exata de nascimento de José Lourenço.
4 - Apud: RAMOS. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. p.39.
5 - Apud: RAMOS. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. p.39.
6 - Sobre os milagres de Juazeiro ver: DELLA CLAVA. Milagre em Joazeiro.
7 - Depoimento de João da Silva, contemporâneo do beato. In: RAMOS. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. p.39.
8 - Apud: RAMOS. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. p.40.
9 - MONTENEGRO. Fanáticos e Cangaçeiros. p.26
10 - BATISTA. História do beato José Lourenço e o Boi Mansinho. p.2.
11 - Não há fontes que indiquem com precisão quantos anos o beato ficou oculto em suas penitências.
12 - Apud: ALVES. A Santa Cruz do Deserto. p.72
13 - BATISTA. História do beato José Lourenço e o Boi Mansinho. pp. 3-4.
14 - Apud: ALVES. A Santa Cruz do Deserto. p.71
15 - O Povo, 07/06/1934.
16 - O Povo, 07/06/1934.
17 - Depoimento de José Honório, contemporâneo de José Lourenço. In: CORDEIRO. Memórias e Narrações na Construção de um líder. p.27.
18 - Sobre a sedição de Juazeiro ver: FACÓ. Cangaçeiros e Fanáticos.
19 - Apud: CORDEIRO. Memórias e Narrações na Construção de um líder. p. 28.
20 - Esse boato, do qual não foi possível encontrar comprovação, dizia que um trabalhador rural, ao pagar uma promessa, oferecera capim roubado ao boi Mansinho, que se recusara a comê-lo.
21 - BARROSO. A Irmandade da Santa Cruz do Deserto. pp. 26-27. Essa versão do encontro entre Zé Lourenço e Floro Bartolomeu é semelhante à descrita por alguns ex-moradores do Caldeirão. Ver: CORDEIRO. Memórias e Narrações na Construção de um líder.
22 - Depoimento de Henrique Ferreira, contemporâneo de José Lourenço. In: CORDEIRO. Memórias e Narrações na Construção de um líder. p.30.
23 - Apud: MACEDO. Floro Bartolomeu – o caudilho dos beatos e cangaçeiros. pp.50-52.
24 - Depoimento de José Pajeú Filho, contemporâneo de José Lourenço. In: CORDEIRO. Memórias e Narrações na Construção de um líder. p. 96.
25 - Depoimento de João da Silva, contemporâneo do beato. Apud: RAMOS. Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. p. 47.

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