Cipriano Barata - Parte I

domingo, 14 de março de 2010





Notas sobre historiografia, história e biografias
            O impasse acerca da posição do saber histórico, do status e das peculiaridades desse tem intrigado aqueles que se ocupam do ofício de historiadores ao longo do próprio curso da história. Falar em historiografia, nesses termos, se aproximaria de falar-se em uma história da história. Mas é sabido que a história nem sempre foi construída do mesmo modo. Considerado o “pai da história” Heródoto escreve suas Historias baseando-se primeiramente no que ele teria visto, e também no que teria ouvido. De Heródoto até os dias atuais as perspectivas constitutivas do saber histórico transformaram-se, e os seus limites tornaram-se tênues e de difícil precisão. O local tido como privilegiado da história, situado entre a arte e a ciência,
tomando para si argumentos de ambas formas de conhecimento é alvo de questionamento, sendo necessária uma afirmação mesmo da necessidade e especificidade do conhecimento histórico[1]. O que tentaremos demonstrar aqui é, de um lado um resgate da biografia como gênero incluído na produção historiográfica e, de outro, como alguns atores e seus feitos e obras, como é o caso de Cipriano Barata, têm, sucessivamente, sido deixados à margem da historiografia brasileira. E tentaremos colocar tal questão dentro dos diversos momentos históricos que negaram um lugar a esses atores na historiografia, buscando uma compreensão que tenta articular a vida e obra de Barata em seu próprio tempo, e a memória histórica e seus inerentes esquecimentos para com esse personagem.
            Antes de adentrarmos no mundo biográfico, ou seja, na forma como trataremos o ator social Cipriano Barata, examinemos um pouco mais essa tensão existente entre história, ciência, arte, e, principalmente história e literatura. O século XIX é o momento em que a disciplina histórica busca afirmar-se enquanto forma legitima e específica de conhecimento. Em meio a esse desafio diferentes pensadores deslocaram a história e seus métodos ora aproximando-os da arte, ora aproximando-os da ciência. A partir dessas diferentes formulações emergem as críticas que caracterizam a história como um conhecimento fluído, insustentável por si só. Tentando se defender dessas críticas, de modo geral, alguns historiadores tendiam a colocar a disciplina histórica como utilizando métodos que se assemelhavam aos das ciências sociais, havendo ainda, dentro da historia também aspectos interpretativos, discursivos que levavam a disciplina a aproximar-se das artes, especialmente da literatura. 
            Certamente que essas formulações aparecem de formas distintas, e estão longe de representar uma coerência e unidade de pensamento. Há aqueles, que seguindo o modelo de Ranke buscam fundar uma ciência histórica, num sentido estrito, elaborando métodos que os levassem a conhecer o passado como realmente teria sido. Esses historiadores metódicos, ditos positivistas, longe de buscarem alinhar história e arte, buscavam a legitimação da história enquanto conhecimento científico, numa concepção bastante diferente da compartilhada na atualidade. De outros lados vemos intelectuais como Michelet e Tocqueville que, ainda que proponham modelos distintos de conhecimento, se afastam dos moldes positivistas e deixam em aberto a possibilidade de diálogo da história com a arte e com a literatura.
            É nesse terreno pantanoso que aparecem as biografias, como uma possibilidade de convergência entre historia e literatura. Logicamente que tal convergência não é realizada de forma simples, e tentaremos aqui percorrer o modo como as biografias foram tratadas dentro da historiografia, para então percebermos de que modo pode-se construir uma historia, que, utilizando-se do gênero biográfico, aproxime-se da literatura, mas ainda assim mantenha as peculiaridades próprias ao conhecimento histórico.
 No século XIX, a biografia era bastante comum, utilizada pelos historiadores metódicos que, através das grandes figuras ligadas aos Estados, buscavam um fio que narrasse e através do qual se compreendesse a história das sociedades européias. Esse fio era constituído através de uma documentação restrita, de caráter oficial. Quase sempre, forjava-se uma historia que possuía um viés heróico, evolutivo, no qual os biografados aparecem como homens retos, guardiões da moral, enfim figuras que em sua trajetória conseguiam representar todo um processo histórico.
            Em princípios do século XX tem-se uma renovação do conhecimento histórico, emerge a da historia das mentalidades, aparecem também tentativas de se construir uma história global.[2] Nesse cenário de transformação do status da história o gênero biográfico parece não mais atender aos anseios dos historiadores, sendo, portanto, relegado a um segundo plano. O historiador francês Georges Duby destoa desse contexto, ao escrever a obra Guilherme O Marechal.[3] Nessa obra Duby encontra uma solução interessante para a tensão que viemos tentando assinalar, a saber, a posição da biografia entre a história e a literatura. Tensão essa que, por sua vez, trás consigo as questões relativas ao particular e o individual, e também ao conteúdo e a forma da narrativa histórica. Com uma narrativa envolvente Duby, beirando o estilo literário, relata, através da trajetória de vida de um cavaleiro medieval, aspectos diversos dessa sociedade. Assim sendo o historiador passa a também contar uma estória, ou seja, historiador e escritor fundem-se sem perda identidade ou legitimidade do conhecimento.
“A qualidade da forma legitima a biografia, enquanto gênero e o rigor de seu conteúdo enquanto história. O historiador que se propõe a realizar uma biografia, deve, nesse sentido, superar essa tensão entre forma e conteúdo”.[4]
Duby nos parece ter conseguido realizar tal proeza, estabelecendo um ponto intermediário entre história e literatura, escrevendo um relato individual permeado com características gerais de uma sociedade que vão além do estrato ao qual pertencia o cavaleiro. De qualquer forma voltaremos a essas questões a seguir, quando tratarmos especificamente do personagem que nos interessa, Cipriano Barata.
Mais recentemente vemos novamente um ressurgimento da biografia no universo historiográfico. Parte desse ressurgimento pode ser explicado pelo alto valor de mercado, pela larga comercialização desse gênero como produto de consumo. Todavia, por um outro lado, vemos um novo espaço para a biografia dentro da historiografia, espaço esse conquistado devido às próprias transformações da história, de seus métodos, da multiplicação de fontes e objetos à disposição do historiador. Não queremos aqui focalizar uma banalização da biografia, mas sim uma remodelação dessa segundo os novos critérios historiográficos.                                        
 “ (...) a história não é aí [em uma biografia] tratada como o inevitável pano de fundo do tempo de vida de uma pessoa famosa; é antes como se a luz incolor do tempo histórico fosse atravessada e refratada pelo prisma de um grande caráter, de modo que no espectro resultante obtém-se uma unidade completa da vida e do mundo” [5]
Percebe-se que o argumento de Hannah Arendt distancia-se do que podemos chamar de uma biografia pura. A história, vista como construída a partir de fragmentos, amplia suas possibilidades. Assim sendo a história que ela se propõe a contar ultrapassa o âmbito do indivíduo, possibilitando captar através do prisma de um personagem, aspectos desses tempos sombrios, a primeira metade do século XX. Cabe colocar que em Homens em Tempos Sombrios, Arendt traça relatos biográficos de personagens díspares, ou seja, através de cada um deles pode-se captar aspectos semelhantes e diferenciados do período focado. 
Outra obra fundamental para reavivar o gênero biográfico dentro da historiografia foi a de Carlo Guinzburg, O queijo e os vermes. O autor abre as portas para a micro-história, e também para a história dos vencidos, ao fazer um relato da vida de um moleiro, ou seja, nenhum grande herói, que foi perseguido e condenado pela Inquisição. A história, na obra de Guinzburg aproxima-se, na forma de narrar-se, da literatura. Quanto ao conteúdo o autor busca revelar, através de seu personagem, as diferentes possibilidades na realidade pós-Reforma.
Tais produções influenciam diretamente a produção historiográfica brasileira, de modo que vemos dentro de nossa produção uma revalorização do gênero biográfico[6]. Mesmo que haja uma grande produção de historiadores brasileiros que resgatam a biografia, parece-nos que esse gênero encontra-se ainda pouco afirmado enquanto parte efetiva da produção historiográfica brasileira. Talvez as biografias ainda sofram, dentro dos meios acadêmicos, os estigmas da biografia pura, talvez falte ainda a percepção desses meios para as potencialidades de uma biografia enquanto historiografia, aproximando a narrativa histórica da literatura, tornando-a envolvente, sem perda de conteúdo.
Pois bem, seria desse modo nosso objetivo traçar uma biografia de nosso personagem, nos moldes colocados acima? Certamente que não. Primeiramente devido ao fato de que essa façanha já foi concretizada.[7] Depois pelo fato de que almejamos aqui trazer Barata para dentro do grupo de pensadores, consagrados pela historiografia nacional como aqueles que produziram obras historiográficas sobre o país, o que acreditamos que os trabalhos anteriores ainda não conseguiram fazer. E aqui esbarramos com alguns problemas. Primeiro o fato, inegável que Cipriano Barata foi um homem de ações muito mais do que de produções intelectuais. Daí nos utilizarmos um traço biográfico como essencial para compreendermos as idéias e o pensamento de Barata. Acreditamos que em Cipriano idéias são inseparáveis de ações. Uma outra dificuldade seria a inexistência de uma grande obra compilada de autoria Cipriano Barata. Para supera-la pretendemos, novamente aproximando história e literatura, tomar seus escritos, discursos, panfletos, e, finalmente seu jornal, como representativos do pensamento do personagem acerca da realidade que o cercava.
Não elevaremos aqui Cipriano Barata à qualidade de herói ou mito. Também não negaremos seu caráter crítico e revolucionário. O que tentaremos é resgatar Cipriano dentro do contexto em que viveu, e pensar como, nessa realidade ele desenvolveu uma visão da realidade que pode ser encaixada no rol da historiografia brasileira. Pensaremos Barata seguindo uma relação antropofágica com o meio, expressa nos seguintes termos:
“O indivíduo bebe no contexto que está inserido, digere e reproduz uma forma própria de compreensão (...) [do] desenrolar da história”.[8]
Nem um Menochio, de Guinzburg, nem os homens dos tempos sombrios de Hannah Arendt. Cipriano produziu sua própria especificidade, repleta de contradições, desenvolvendo um modo próprio de ver o país, o qual buscaremos esclarecer nas linhas que se seguem.

[1] - Para mais ver, especialmente WHITE. Trópicos do Discurso - Ensaio sobre a crítica da cultura. BENJAMIN. Sobre o conceito de história.
[2] - Para mais informações ver: BURKE. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales e  
[3] - DUBY Guilherme Marechal.
[4] - ROMANI. A história como narrativa biográfica.
[5] - ARENDT Homens em tempos sombrios.
[6]  - Como exemplo cito: ROMEIRO. Um visionário na corte de D. João V. ; HORTA, A imagem rebelde.
[7]  - Entre as biografias de Cipriano Barata apontamos especialmente MOREL, Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade.
[8] - DIAZ, Furio. Storia e Biografia. Apud: ROMANI. A historia como narrativa biográfica.

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