Cipriano Barata - Parte IV

sábado, 20 de março de 2010

Conceitos e marcos historiográficos dos escritos de Cipriano Barata[1]
            Percorremos, pois, a trajetória de vida de Cipriano Barata. Todavia, como dito anteriormente, esse trabalho não se limita a traçar um perfil biográfico desse personagem. Buscaremos então desenvolver o legado intelectual de Barata. Partindo principalmente de seu jornal Sentinela da Liberdade, mas também de outros textos e escritos postergados por Cipriano, tentaremos mostrar como ele desenvolveu uma compreensão própria de sua realidade. Se pensássemos em uma historiografia no sentido clássico teríamos grandes dificuldades de incluir aí o legado de nosso personagem. Porém ao ampliarmos o escopo desse conceito conseguimos perceber como Cipriano construiu uma interpretação para a história que via acontecer, interpretação essa que revela facetas pouco exploradas daquela realidade, merecendo assim figurar entre o rol daqueles que historiaram sobre o Brasil.

            Os grandes temas que perpassaram os escritos de Barata podem ser agrupados nos seguintes conceitos: revolução, povo, nação, liberdade/despotismo. Ao passo que os três primeiros se desenvolveram de forma mais acentuada através do Sentinela da Liberdade, num período em que podemos dizer que Cipriano atingia sua maturidade intelectual; os últimos podem ser apreendidos desde de suas primeiras aparições na cena pública, ainda no século XVIII.
            Em 1823 ele já traça alguns traços históricos dos reinados de D. João VI e D. Pedro I, ressaltando o aspecto despótico e tirano desses, exercidos principalmente através do monopólio da violência, afirmando que o desejo popular de afastar-se desses moldes lusitanos:
“(...) em uma palavra, Os Povos têm em vista o horrendo quadro da Monarquia Absoluta passada, abominam a memória desse Reinado e por isto não querem união com Portugal, nem tão pouco que o novo Império se assemelhe ao Reino do Senhor dom João VI (...)”.[2]
            Já aparecem aqui as preocupações com a ruptura, e também esse agente de crucial importância para os escritos de Barata: o povo ou os povos.  Esse povo aparece sempre ligado às idéias de revolução e nação. O conceito de povo aparece em Cipriano tanto na sua acepção política, quanto relativo à questão social. Enquanto esteve nas Cortes já podemos perceber essa última característica, como presente no pragmatismo dessas palavras:
“É necessário considerar que enquanto aqui se gastam palavras os infelizes morrem de fome ao desamparo”.[3]

            Antes de analisarmos que seriam esses infelizes em sua composição, vejamos de que forma Barata opera com o povo enquanto agente político. O povo aparece como legitimador de um processo de ruptura revolucionária. Essa idéia encontra-se profundamente ligada ao legado da Revolução Francesa, herdado pela modernidade política européia. Em Barata reaparece a idéia de soberania popular, na qual o povo aparece como portador coletivo dos direitos individuais, tendo, portanto, a legitimidade de destruir governos despóticos, ameaçadores da liberdade.
“Em uma revolução o povo assume a sua autoridade e os seus Direitos imprescritíveis e destrói o seu Governo, aniquila os Reis, as Leis e tudo velho para criar tudo novo, segundo a sua Soberana Vontade”.[4] 
            Aparece nesse trecho claramente a idéia básica de Cipriano Barata de revolução enquanto uma ruptura no corpo político. Ao buscarmos a compreensão desse conceito nos escritos de Barata não podemos nos deixar influenciar pelo moderno conceito de revolução, cunhado ao longo do século XX. Pois bem, como se viu para nosso personagem a revolução encontra-se também ligada à soberania popular. Assim sendo percebe-se a revolução como “divisor de águas, como momento criador de uma nova legitimidade política, momento mesmo de ruptura”.[5] Nessa ruptura saiam de cena o despotismo e a monarquia, dando lugar ao povo e aos princípios da liberdade e da igualdade. A revolução, ainda assim, não era possível partindo apenas de um projeto de uma vanguarda esclarecida. Seria necessário que as forças sociais, em seu conjunto, tomassem consciência da necessidade e assumissem o projeto revolucionário. Ainda nesse ponto, Barata alerta sobre a necessidade de condições materiais para se sustentar tal projeto. Desse modo ele demonstra a preocupação com a perpetuação da ruptura, das transformações ocorridas através da revolução. Para tal perpetuação ele propunha mesmo a violência, assim como vimos que incentivou guerrilhas durante a Confederação do Equador. Eis algumas palavras de Barata no tocante a esse tema:
“(...) Mas O Carapuceiro devia acrescentar outra essencial, a qual é ter meios de sustentar este projeto ou revolução, e dizem os prudentes que há outras coisas indispensáveis as quais parece-me que são as seguintes: I. que o povo conheça a necessidade de mudança para sua salvação ou alívio, a fim de pegar em armas; II. Que se façam imediatamente reformas nos tributos, aliviando o povo (...)”.[6]

            Cipriano Barata formulava tais questões observando os rumos que tomava seu país, recém separado de Portugal. Assim sendo ele revela uma postura crítica do processo histórico da independência, momento no qual surgia a possibilidade de realizar-se uma revolução, e que, a seu ver não foi realizada. Antecipando a historiografia ele enxerga as permanências do processo de Independência, a manutenção de estruturas de poder despóticas, a centralização exacerbada e a violência contra as reivindicações regionais. Daí suas severas críticas aos Andradas e ao governo de D. Pedro I.
            Se Cipriano decepcionara-se com os rumos tomados pela Independência, ele lutara para concretizar sua almejada revolução e formulava também a emergência de uma Nação brasileira.  Vejamos, pois, como se configurava essa nação brasileira para Barata, retomando também a idéia de povo, agora em seus aspectos sociais e raciais.
Tanto em seus gestos, quanto em suas vestimentas e também em seus escritos vemos Barata tentando configurar a identidade nacional do brasileiro. Em alguns momentos essa identidade aparece circunscrita à Bahia, em outros vemos a noção de Nação se ampliar para todo o território brasileiro. Assim sendo, aproximando-se de uma análise antropológica, vemos Cipriano buscar as raízes dessa identidade em meio à miscigenação racial, sem que tal tenha aspectos negativos:
“(...) há pouco éramos um mixto de Tupinambás, Caités, Boticudos, e outros Caboclos, e gentes brancas e morenas, misturados com Portuguezes na aparência de forros, na realidade escravos; mas hoje somos todos Brasileiros e formamos um só corpo, e povo de irmãos livres, uma só palavra abrange tudo”.[7]
            Assim sendo, percebe-se que a formação da identidade nacional brasileira passava pela constituição do povo, independente das origens raciais, enquanto indivíduos com mesmos direitos, guiados pelos princípios da liberdade e da igualdade. Nesse ponto é necessário clarearmos a relação de Barata com a escravidão. Já dissemos que ele era proprietário de escravos. Na década de 1820 eram feitos em seus jornais anúncios de compra e venda de escravos. Todavia, parece-nos, que sua postura se altera, já que em 1831 ele afirma:
“Não receberei anúncios sobre vendas e fugas de escravos; minha Gazeta não é leilão, nem capitão-do-mato”.[8]
            Tomando tais palavras, aliadas às caracterizações feitas a Barata como Pai dos Negros, podemos analisar que de ma certa forma ele questionava a desigualdade inerente à situação escravista. Todavia, não podemos cobrar ou julga-lo tanto por ser proprietário de alguns escravos, quanto por não tocar na abolição, já que seria exigir que de nosso personagem que ele estivesse completamente desligado da sua realidade, uma sociedade escravista e aristocrática.
            Percebemos então que a Nação projetada por Barata incluiria as diferentes etnias e proporcionaria os espaços para a constituição do povo brasileiro, com sua identidade própria, e incorporaria, enfim, os ideais de liberdade e igualdade, estendendo a cidadania à sua plenitude. Para tal, outro ponto levantado por Cipriano é acerca da grande propriedade fundiária, problema esse que até os dias atuais encontra-se na pauta de discussões.
“Cidadãos naturais, que têm igual direito ou ainda maior sobre os terrenos, por serem do sangue dos Caboclos, não possuem uma pequena porção em que levantem sua cabana ou cavem sepultura”.[9]
            Outro ponto interessante das reflexões de Barata é referente ao caráter dócil do brasileiro, tema esse que um século depois será formulado, em termos distintos, pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Cipriano acredita que os brasileiros passaram por transformações no seu caráter. Ao buscar uma nova configuração da identidade cultural brasileira ele, com seu estilo irônico, disserta sobre essa cordialidade ou docilidade do brasileiro:
“Docilidade é a boa disposição do homem para se deixar instruir. Gênio ou natureza dócil é aquele que abraça as doutrinas e ensino que se lhe dá; porém este termo docilidade aplicado hoje aos Brasileiros tem outro sentido: dócil quer dizer estólido, ou tolo; homem que se contenta com tudo, que deixa ir as coisas por água abaixo (...); em uma palavra, dócil deixa dizer Brasileiro ovelha mansa, que trabalha como burro para pagar tributos desnecessários em benefício dos Satélites do Governo”.[10]
            Cipriano Barata buscava assim questionar a ordem que se estabelecia, e para tal produzia uma interpretação dos processos que levaram à constituição dessa ordem. O mais interessante de notar-se é a consciência de Cipriano, da qual hoje os historiadores partilham, da relatividade, refutabilidade, de suas interpretações:
“Também advirto que tudo quanto disser nas minhas Gazetas são opiniões que qualquer um pode combater, meus escritos são para instruir e por isso em todos só deve valer a verdade”.[11]


[1] - Infelizmente, devido à uma greve dos funcionários da Biblioteca Nacional, não conseguimos obter reproduções dos jornais e escritos de Cipriano Barata que encontram-se, quase todos, sob guarda dessa instituição.
[2]  - BARATA, Cipriano. Dezengano ao público – ou – Exposição dos motivos de minha prisão na Província da Bahia. Apud: MOREL, op. cit.. P. 92
[3] - Fala de Cipriano Barata na sessão de 21/02/1822 das Cortes de Lisboa. Apud: Garcia, Paulo op. cit.
[4] - Sentinela da Liberdade da Guarita de Pernambuco nº 24. 25/07/1823. Apud MOREL, op cit..
[5] - MOREL, op.cit. p. 342.
[6] - Sentinela da Liberdade (...) nº 1. 16/07/1834. Apud MOREL, op cit. p. 344.
[7] - Sentinela da Liberdade (...) nº 1. 12/01/1831. Apud MOREL, op. cit. p.347.
[8] - Sentinela da Liberdade (...) nº 1. 12/01/1831. Apud MOREL, op. cit. p.347.
[9] - Sentinela da Liberdade (...) nº 24. 01/10/1834. Apud MOREL, op. cit. p.351
[10] - Sentinela da Liberdade (...) nº 10. 20/09/1834. Apud MOREL, op. cit. p.240
[11] - Sentinela da Liberdade (...) nº 32. 21/11/1832. Apud MOREL, op. cit. p.345.

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