Um raio de Luz que se difrata - Federalismo - Parte III

terça-feira, 23 de março de 2010


Frei Caneca, repúblicano caçado pelas forças imperiais por suas idéias revolucionárias

Ao mesmo tempo em que bailava en tierras porteñas a idéia do federalismo alcançou também a terra do samba, antes mesmo do nascimento desse. Isso porque, se formos recuperarmos as raízes do federalismo brasileiro, veremos que elas remontam mesmo ao período em que a idéia de Brasil nem sequer existia: à época da América Portuguesa.  Todavia a experiência brasileira tomou rumos bastante específicos, certamente devido à especificidade dos processos históricos por que passou. Em suma, o Brasil colonizado por Portugal – ao passo que as demais localidades latino-americanas foram dominadas pela Espanha – herdou de sua colônia uma série de valores que fizeram com que a recepção da idéia do federalismo se desse aqui de forma bastante atípica. Recuperemos, pois, nossas raízes...[1]

Devido a suas pequenas proporções territoriais e ao pequeno contingente populacional Portugal apresentou, desde o início da colonização, dificuldades para levar à cabo tal empreendimento. Além disso, havia o risco real de perda de territórios, uma vez que outros Estados europeus mandavam expedições para o novo mundo. Daí a opção por recorrer à iniciativa privada para ajudar o Estado português em sua árdua tarefa.[2] Uma saída para viabilizar tal aliança foi a divisão do território americano que lhe competia em faixas de terras retangulares que iam do litoral à linha imaginária de Tordesilhas. A esse sistema nomeou-se Capitanias Hereditárias.A Coroa fornecia, então, uma carta de doação e incentivos para a ocupação dessas, que deveriam também se tornar produtivas. Seus ocupantes seriam chamados capitães donatários, e não compreenderiam os melhores dos portugueses. Os primeiros ocupantes do território eram, portanto, bandidos, cristãos-novos fugidos de perseguições religiosas, ou seja, estavam bem distantes da corte portuguesa. O importante de notarmos aqui é que, desde seus primórdios, o que viria a se constituir como Brasil no século XIX tem sua organização política fundamentada no princípio da descentralização e na iniciativa privada. Essa mentalidade se reproduziria, não sem sofrer alterações, ao longo da história brasileira.
Ainda que a Coroa tenha realizado tentativas de centralizar as decisões políticas na colônia – com a criação do governo geral da colônia em 1549 e, especialmente, com as políticas de Pombal no século XVIII – a descentralização e os interesses localistas sempre se sobressaíram frente a um possível interesse central.[3] Até mesmo um movimento como a Inconfidência Mineira que ousou desafiar a metrópole e propor a república, pensou em um Brasil tal qual o temos hoje. Seu foco era direcionado a Minas Gerais.[4] Fica, portanto, claro que a idéia de um Brasil estava ainda muito distante do novo mundo.
            O ano de 1808 é fundamental para compreendermos as raízes do federalismo no Brasil. É nesse momento, com a invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, que a corte portuguesa resolve transferir-se para o continente americano. Essa decisão traria um mar de novas possibilidades aos colonos, e pode-se mesmo afirmar que é a partir daí que se gesta a idéia de Brasil. Isso porque à essa época os intelectuais, membros da elite brasileira, já tinham estudado e absorvido grande parte das idéias dos revolucionários americanos e franceses do século XVIII. E, uma vez transferido o centro do poder para as terras americanas, estava solapada a legitimidade da dominação colonial. Essa começa a se flexibilizar a partir da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Se, de um lado Portugal visava manter sob seu jugo as terras douradas do Brasil; de outro, ao conceder tal status, abria uma brecha através da qual a elite brasileira conduziria ao processo de independência em 1822.[5]
A partir da independência é que chegamos ao momento que tem interessado fundamentalmente nossas reflexões: o momento da construção do Estado. Assim como norte-americanos e argentinos, chegava a hora de formar as bases do que viria a ser o Estado Brasileiro. Todavia, mesmo podendo analisar as experiências americana, francesa, argentina, e de outros vizinhos latino-americanos, a opção brasileira foi inédita. E é entendendo esse ineditismo que entenderemos o sentido do federalismo em territórios brasileiros.
Ao passo que nos países que foram se tornando independentes na América Latina a opção pela forma republicana de governo foi quase um consenso, o Brasil fugiria a essa tendência republicana. Isso porque aqui se conjugaram uma série de fatores contra a opção republicana: havia o risco iminente, que vinha desde o começo da colonização, de fragmentação do território; o perigo do “haitianismo” era também latente, visto a experiência violenta de Santo Domingo[6]; a elite política, que ditou rumos da independência, fora formada na Universidade de Coimbra – ou seja, fora educada a partir das  idéias de um despotismo ilustrado. Assim a opção tomada aqui foi, para o espanto de nossos vizinhos, de desvincular-se de Portugal para fundar-se um Império Brasileiro, em outras palavras: foi adotado o regime monárquico. Não menos curioso é o fato de que, o arauto da Independência e primeiro imperador do Brasil foi Pedro de Alcântara, filho de D. João VI, rei de Portugal. De fato, ainda que houvesse uma separação política, as raízes portuguesas estavam solidamente cravadas em terras brasílicas e ainda demoraria um certo tempo para uma emancipação mais efetiva.[7]
A fala de José Teixeira de Vasconcelos, na Câmara Legislativo do Rio de Janeiro declarando apoio ao príncipe permanecer em território americano, como forma de evitar “o quadro de horrores da anarquia e dos desastrosos males que nos esperam, a exemplo da América Espanhola”, [8] é bastante significativa. Quase como utilizando um espelho, a justificativa para a situação atípica da opção monárquica no Brasil é projetada na situação de nossos vizinhos. Certamente que ele não tinha condições de sequer imaginar a “onda de anarquia” que estava por vir em poucos anos no Império brasileiro. Mas em breve analisaremos essa onda. Decidido o regime restava ainda decidir sobre o tipo da monarquia: unitária ou federativa? Já podemos identificar aí o primeiro sentido do federalismo brasileiro, herdado da tradição colonial, a saber, descentralização política. Tal qual a experiência norte-americana e a argentina, o federalismo no Brasil significou, em um primeiro momento, aumento do poder local e diminuição do papel centralizador do Estado.
Os debates que se travaram ao longo do século XIX foram constantes, e a oposição entre interesses locais e interesses gerais ou centrais, teve importante papel nos processos históricos desenrolados ao longo desse século, assim como em nossos vizinhos argentinos. Pois bem, declarada a independência restava agora organizar constitucionalmente o Estado. Para isso foi convocada uma Assembléia Constituinte que, ao apresentar seu projeto para o imperador foi dissolvida em 1824. Nesse mesmo ano D. Pedro I outorga a primeira Constituição do Império brasileiro. Pautada por um centralismo extremo e criando mais uma das invenções brasileiras, é criado o Poder Moderador, delegado ao imperador e que podia intervir em qualquer um dos outros três poderes. O quanto não deve ter gerado espanto nos outros países americanos essa quimera criada pelo imperador. O fato é que não somente eles foram surpreendidos por esta constituição. Também os brasileiros foram pegos de surpresas, o que gerou uma série de reações e debates por parte das “forças centrífugas” do Império.[9]
 Esse cunho autoritário de D. Pedro I, e sua opção pela monarquia centralista, levou alguns federalistas a considerar a opção pela república como sendo a única em que o federalismo se tornava exeqüível. Mas para a grande maioria ainda seria possível conjugar monarquia e federalismo. Esses, certamente, não assimilaram ipsi litteris, nem readaptaram à realidade brasileira os princípios contidos n´O Federalista. Federalismo ainda significa aqui, fundamentalmente, confederalismo, como fica expresso nas palavras do deputado Nicolau Pereira de Santos Vergueiro aos seus pares:

“Ao mesmo tempo em que admito o princípio federal em todos os países bem organizados, contudo não admito a independência das províncias. Mas eu tenho visto escritores que também chamam federal a esta ligação de poderes legais [locais], ligados todos a um centro e é nesse sentido que tenho propugnado pela federação”.[10]
 Os construtores do Estado brasileiro parecem, nesse momento não ter assimilado as dimensões básicas das experiências dos EUA e da Argentina, no que toca ao fracasso das suas Confederações. Mas talvez esse fosse o caminho a ser tomado naquele momento. O fato é que a situação de D. Pedro I tornava-se insuportável por uma série de fatores, dentre os quais merece destaque a repressão à Confederação do Equador, proclamada em diversos estados do nordeste e liderada por Frei Caneca, republicano histórico.[11] Isolado externa e internamente, em 1831 o imperador abdica ao trono em favor de seu filho, que contava à época com cinco anos de idade. Constituiria-se, assim, uma regência para governar o império, período durante o qual, retomar-se-iam os debates em torno do federalismo no país.[12]
A possibilidade de uma monarquia federal - mais uma das peripécias brasílicas – tornava-se uma realidade possível. Ainda mais depois da aprovação, na Câmara de um projeto de reforma constitucional que previa a criação de assembléias provinciais, a divisão de rendas entre o poder central e as províncias, e extinguia os resquícios absolutistas deixados por Pedro I: o Conselho de Estado, o poder Moderador e a vitaliciedade do Senado. Essa instituição, por sua vez, barrou o projeto, cumprindo a função que lhe era atribuída por Maquiavel. Os argumentos eram relativos aos perigos de se adotar o modelo norte-americano, sendo citado o caso Mexicano, ou seja, relembrando as palavras de Teixeira de Vasconcelos já citadas. Para Bernardo Pereira de Vasconcelos tratava-se de um problema quanto ao estado de civilização em que se encontrava o Brasil. Não podíamos, por isso, simplesmente importar a idéia tal qual era utilizado ao norte do continente. A solução veio através do Ato Adicional, que representava uma versão reformista do projeto, menos radical, portanto, e que firmou o regime da monarquia federativa.
  Enquanto diferentes projetos seguindo linhas distintas de pensamento eram discutidos no Congresso, as “forças centrífugas” seguiam se fazendo notar. Talvez o personagem mais simbólico dessas seja Cipriano Barata, república histórico que participara da Confederação do Equador, fora preso e perseguido pelo governo de Pedro I e novamente participaria de agitações populares durante a regência. Após o Ato Adicional houve cinco grandes revoltas, ligadas a conflitos pela hegemonia do poder local: em São Paulo e Minas Gerais no ano de 1842; a Cabanagem no Pará entre 1835-40; a Sabinada na Bahia (1837); a Balaiada no Maranhão (1838-1841); no Rio Grande do Sul os chamados federalistas chegaram mesmo a proclamar a república em 1836. O saldo de todas essas rebeliões foi um número imenso de mortos e, politicamente, a constatação de que monarquia federal, ou descentralização, tornara-se sinônimo de anarquia, com havíamos anunciado algumas linhas acima. Tal qual o exemplo americano, em que a “política das liberdades” gerara um caos social e político; no Brasil a monarquia federativa propiciou às insaciáveis elites locais o domínio completo regional. Daí a emergência das massas, ou da espuma de que James Otis falava, na cena pública.
O modelo monárquico-federalista parecia ter esgotado-se, iniciando uma maré que foi chamada de regresso conservador. Um liberal, ou ex-liberal, Bernardo Vasconcelos, redator do Ato Adicional, encarregou-se de organizar o núcleo que formaria o futuro Partido Conservador. Fez-se valer a máxima de que “nada mais liberal do que um conservador no poder”. O processo político e constitucional caminha, então para a centralização política e a redução das autonomias municipais. Mas antes de evocar o principio do federalismo enquanto confluência de união e autonomia regional, esse regresso pautou-se por um caráter quase absolutista, restaurando mesmo o Poder Moderador. Ainda que os liberais tentasse refrear os conservadores com o golpe da maioridade, a onda já tinha adquirido proporções indomáveis. E assim começa o reinado de D. Pedro II, aos dezessete anos, pautado pelo centralismo.
Somente na década de 1860 que o debate sobre o federalismo retoma proporções sólidas no país. E é através de Tavares Bastos que o federalismo brasileiro – até então um federalismo às avessas – ganha os contornos tão caros a James Madison nos EUA. Embora não fosse um republicano declarado, ao ruminar as idéias contidas n´O Federalista, ele operava exatamente a junção, a nosso ver essencial, entre federalismo e republicanismo. Em fins século XIX e princípios do XX, no período da transição do Império à República, outras duas personalidades se destacariam, inicialmente defendendo a articulação federalismo e monarquia, depois passando a ser republicanos: Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Cabe, enfim, lembrarmos das palavras de Sérgio Buarque de Holanda, ao afirmar que a democracia no Brasil era um lamentável mal-entendido. Talvez o federalismo também tenha tido essa sina durante certo tempo. Talvez por um capricho da Fortuna, talvez devido aos processos históricos e sociais, emergiram figuras públicas como Tavares Bastos, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco que redimensionaram o sentido do federalismo tal qual formulado em O Federalista.
Fica, portanto, consolidado o elo que liga as experiências brasileira, argentina e norte-americana quanto ao federalismo: um período em que federalismo se ligou a confederacionsimo, que é superado por uma associação de republicanismo e federalismo. Fica claro como, os raios nascentes de Benjamin Franklin reluziram por todo o continente americano. Todavia, ao reluzirem atravessaram o prisma da realidade histórica e social de cada localidade, e acabaram por se refratar de formas distintas. Na Argentina a difração seguiu muito de perto o modelo norte-americano. No Brasil, por sua vez, essa foi feita em um tempo maior, com peculiaridades até dantes nunca vistas. Estão, enfim, refeitos os passos do federalismo, que surgido na terra do jazz, bailou o tango argentino e sambou à brasileira. Muitos foram os outros ritmos experimentados por essa idéia na América Latina, mas essa, certamente, já é outra história...


[1] Ainda que sua reflexão seja mais sobre a democracia, utilizamos aqui as idéias de HOLANDA. Raízes do Brasil. Ver também ESTRADA. Fronteiras da Democracia em Sérgio Buarque de Holanda.
[2] Ver: CARVALHO. p.156.
[3] As capitanias hereditárias foram extintas por Pombal no século XVIII, mas o regionalismo continuou sendo a tônica. Desse momento até meados do século XIX perdurou o sistema de sesmarias.Ver: MOTA
[4] Além dessa, uma série de outras rebeliões durante o período colonial demonstram, por um lado a descentralização política, por outro a debilidade do poder metropolitano. Já a Inconfidência foi altamente influenciada pela Revolução Americana.Ver: VILLALTA.
[5] Ver CARVALHO.
[6] Sobre o “haitianismo” ver: MOREL.
[7] Talvez “um certo tempo” seja um grande eufemismo, visto que na visão de Sérgio Buarque de Holanda até o século XX a revolução fundamental para os brasileiros ainda está para ser realizada. Mas o que seriam 500 anos perto dos milênios de existência da civilização européia? 
[8] Apus: CARVALHO
[9] Para o federalismo brasileiro no século XIX ver: DOLHNIKOFF; Sobre as “forças centrífugas” ver: HOLANDA.
[10] Apud: DOLHNIKOFF. p.17.
[11] Vide a obra de Evaldo Cabral de Mello
[12] Sobre um histórico do período regencial ver: MOREL.

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