Mitologias políticas na literatura de cordel

quinta-feira, 15 de abril de 2010


Na consolidação de cada nação está envolvida a construção de seus mitos. Dentre esses, os mitos políticos parecem ter uma função especial. De maneira geral é possível dizer que eles possuem uma função de coesão social e legitimação da ordem vigente. Não restam dúvidas de que os mitos políticos distinguem-se dos demais, mas em busca dessa especificidade que os marca, corre-se o risco de confundi-lo com outros conceitos, tais como o de representação, imaginário político ou ideologia. O primeiro esforço que será feito nesse trabalho será um percurso teórico para definição do conceito de mito político, e sua demarcação frente a outros conceitos importantes no âmbito do político. Todavia o foco principal aqui não é essa definição conceitual, mas sim como aplicar esse conceito a partir da leitura de uma fonte específica que (re)conta a história nacional: a literatura de cordel. Analisando alguns personagens da política e da história do país, poderemos adentrar no universo da cultura popular brasileira e entender como ela elaborou e reelaborou essas figuras, criando e disseminando alguns mitos políticos importantes entre as camadas mais humildes da população brasileira. Pode-se dizer que se hoje a mídia tem um papel fundamental na construção desse ideário mítico, no passado quem atuava nesse sentido era a literatura de cordel.


Mitos políticos: reflexões em torno de um conceito
A palavra mito tornou-se vulgarizada em tempos recentes, o que produz, no mais das vezes, uma desvirtuação de seu conceito. Esvaziada de sua precisão conceitual e teórica, torna-se mais um vocábulo sem sentido preciso, divulgado através dos meios de comunicação. Mas nem por isso deve-se negar a importância fundamental que os mitos têm em todas as sociedades humanas, desde a antiguidade até os tempos modernos. De fato, é a partir da expansão da revolução industrial, da aceleração crescente da vida a partir do século XIX, que os mitos políticos desempenharão um papel crescente. Utopias, sonhos e esperanças, fundidos em sentimentos que vão da nostalgia à projeção do futuro, para configurar alguns dos mitos políticos com maior força de mobilização e coerção.
Buscando definir mais precisamente o vocábulo, vejamos as definições dadas pelos estudiosos. Normalmente o mito é concebido como uma narrativa referente a um passado, ou ainda a tempos imemoriais, mas que mantém uma ligação com o presente, tendo um valor explicativo sobre uma certa realidade. Para Eliade:
 “mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. [...] É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente.” [1]

 Além disso, essa narrativa pode conter uma justificativa das formas de organização social do presente, ou ainda de um possível futuro a ser alcançado.[2]
Uma outra noção, também associada aos mitos, liga-os a um componente de mistificação. Próxima a essa, encontra-se também aquela que os vincula à fabulação. Questiona-se aqui o componente do realmente, do trecho citado. De certa forma, o que ambas as definições parecem indicar é a relação entre mito e realidade, ou mito e verdade. A idéia é a de que o mito altera os dados da realidade, produzindo uma espécie de falsa visão do mundo. É impossível não deixar de notar, nessa visão, a proximidade com a idéia de ideologia como falseamento da realidade, tão difundida por alguns autores marxistas.[3] O fato é que esse tipo de noção tenta distinguir algo que não pode ser separado ao se tratar dos mitos: a fronteira entre o racional e o imaginário, entre o objetivo e o sonho. É nos meandros dessa complexa teia que o mito político encontra sua força. Força que é ao mesmo tempo explicativa, justificativa e mobilizadora.
Para entender como os mitos políticos cumprem essas funções é preciso se remeter aos momentos históricos de seu surgimento. Essa gênese parece estar ligada a certos hiatos históricos, momentos de crise de valores, e de desestruturação social. Em uma análise que pode pender da sociologia histórica, seguindo Durkheim e os momentos de anomia, à psicologia individual, expressa através da angústia e do sentimento de solidão do homem moderno. Nas palavras de Raoul Girardet:
“Não há nenhum dos sistemas mitológicos que tentamos definir que não se ligue muito diretamente a fenômenos de crise: aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam a vida coletiva. Nenhum que não se relacione a situações de vacuidade, de inquietação, de angústia ou contestação. (...) é nos ‘períodos críticos’ que os mitos políticos afirmam-se com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade, exercem com mais violência seu poder de atração”.[4]

Um momento histórico que expressa bem essas características é o cenário europeu pós-Primeira Guerra. O horror provocado pela guerra, a destruição causada, possibilitou a emergência de diferentes mitos políticos, talvez tendo a figura do Salvador como seu maior representante. O fato é que é nesses momentos de crise que os mitos surgem, ou reaparecem sendo ressignificados. E ganham a força de darem coesão seja a um grupo, seja a uma sociedade. Reinterpretação do passado, projeção de um futuro melhor, oscilando entre a nostalgia e a profecia o mito político ganha a capacidade de mobilizar os homens.[5]
Nesse ponto, torna-se importante uma reflexão da relação entre o mito político, a política e a história. De um lado o mito não surge do nada, como mera especulação ou fabulação. Pelo contrário, é a partir de certos fatos históricos que ele se alimenta e se formula. De um outro lado, o caráter político do mito, tanto em sua fundação quanto na mobilização dele decorrente não pode ser esquecido. Todavia, por não se tratar de uma narrativa científica ou estritamente objetiva, o mito produz uma espécie de homogeneização do passado e da realidade. Uma espécie de sociedade ideal, com solidariedades e laços afetivos dá lugar às disputas e conflitos políticos existentes. A história escrita sempre através de confrontos e disputas, passa a ser vista em um plano ideal, quase romântico, de permanências e não disparidades. Nesse sentido alguns acusam os mitos de tornarem-se anti-históricos e anti-políticos.[6] Ainda que seja necessária essa ressalva, os mitos políticos encontram seus lugares no imaginário de nossa sociedade, daí a importância de serem analisados historicamente, em seu processo de eclosão, construção, solidificação, e queda.
            Outro tema importante a ser tratado é o da alienação. Note-se que não se trata aqui de uma alienação produzida a partir das condições objetivas e materiais de existência, seguindo a trilha de Marx. O plano aqui é o do subjetivo. Isso porque
“a efervescência mítica começa a desenvolver-se a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se pode considerar como um fenômeno de não identificação. A ordem estabelecida parece subitamente estranha ou hostil. Os modelos propostos de vida comunitária parecem esvaziar-se de toda a sua significação, de toda legitimidade. A rede das solidariedades antigas se desfaz”.
           
            Momento de afirmação de uma nova identidade, esse é também o da suspensão das velhas certezas e verdades. Daí o drama da alienação, do sentir-se deslocado, do sofrimento, da angústia subjetiva expressa enquanto sentimento pessoal e intimamente vivido. Uma incerteza que é ao mesmo tempo geradora e propulsora dos mitos políticos, e que projeto nesses a imagem de uma Salvação ou Idade do Ouro. Esse tema nos leva diretamente a uma das funções do mito político.
            Partindo de um certo traumatismo psíquico no momento de sua origem ou afirmação, a primeira das funções do mito político colocada por Raoul Girardet, atua exatamente no sentido de uma reestruturação mental que visa a sanar essas aflições. Ainda que o mito político tenha em sua narrativa uma composição de imagens fragmentárias, essas acabando tendo uma visão mais globalizante ou estruturante da sociedade em seu passado e seu futuro. Recompõem-se, assim, o equilíbrio dos corações, das consciências, rompidos nos momentos de tensão. É com se uma nova inteligibilidade fosse construída, a partir do imaginário mítico, gerando uma realidade em que é possível se reconhecer e ser reconhecido. Isso se dá seja a partir da identificação da figura de um Salvador, um herói mítico, até a identificação de um inimigo comum, presente nos temas do Complô, ou da Conspiração.
            Todavia, conforme se afirmou aqui, não é apenas na dimensão individual, psíquica ou subjetiva que atuam os mitos políticos. Aliada à função de reestruturação mental surge outra, fruto da potência mobilizadora, que é aquela da reestruturação social. A partir de um momento de vacuidade social, onde os laços estão frágeis, o mito político apresenta-se com instrumento de reconquista de identidade. Aparece aqui o papel de reconstrução de novas formas de organização comunitária no seio da sociedade global. É na comunidade que se geram os valores e sentimentos que permitem uma coesão maior e um projeto político comum. Interessante notar a relação paradoxal do mito político, analisado do ponto de vista sociológico em que aparece como determinante e determinado: “saído da realidade social, é igualmente criador de realidade social. Surgido ali onde a trama do tecido social se rompe ou desfaz, ele pode ser considerado como um dos elementos mais eficazes de sua reconstituição”.[7]
            Reconstituídos os laços que ligam a dimensão individual, psicológica, à coletiva, social, vale lembrar que Girardet distingue quatro grandes temas da mitologia política: a conspiração, o salvador, a idade do ouro e a unidade. Vale lembrar que esses são temas que se aplicam ao objeto de pesquisa do autor. O esforço que se seguirá será de ver até que ponto esses modelos podem ser aplicados ao objeto desse estudo. Que mitologias políticas podem ser encontradas na literatura de cordel brasileira?


[1] ELIADE. Mito e realidade. p.11.
[2] Ver: GIRARDET. Mitos e mitologias políticas. pp. 12-13.
[3] Vale lembrar aqui que nos referimos a uma certa tradição marxista, que se apropriaram de certos trechos da obra de Marx, e disseminaram essa visão de ideologia. A visão de Marx é certamente mais complexa, e merece uma reflexão aparte.
[4] GIRARDET. Mitos e mitologias políticas. p.180.
[5] Nesse ponto uma referência importante, além da já citada de Raoul Girardet é: SOREL. Reflexões sobre a violência.
[6] Para algumas observações a esse respeito ver os trabalhos de GIRARDET. Mitos e mitologias políticas e de MIGUEL. Em torno do conceito de mito político.
[7] GIRARDET. Mitos e mitologias políticas. p.184.

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