A história é o tempo[1]. A frase do historiador francês abre uma gama infindável de possibilidades e questionamentos, entre os quais encontra-se aquele que norteia essa investigação. Ela isolada perde seu sentido, portanto buscaremos recolocá-la em sua totalidade, visando apreender dos escritos de seu autor - Jules Michelet- qual a concepção de tempo histórico que permeia sua obra. Nossa investigação será baseada em um capítulo de sua obra[2] e da compreensão do método histórico utilizado por Michelet.
Cabem antes algumas palavras sobre a problemática do tempo. Esse tem várias facetas e já foi modelado de diversas formas. Há quem o tenha resumido a datas. Há outros que o pensaram como uma cadeia de fatos unidos por uma relação causal. Há ainda aqueles que o interpretaram como progresso ou evolução. Seria demasiadamente audacioso tentar esgotar em algumas linhas as diferentes formas como os pensadores já interpretaram o que seria esse tempo. O fato que nos interessa especialmente aqui é que todos eles realizaram uma operação de tentar ordenar e compreender o que foi a experiência humana, que tende a cair no devir. E ao realizar essa operação é criado um arcabouço teórico, que pode estar implícito ou explícito, dentro do qual encontra-se o que buscamos investigar, a concepção de tempo histórico. Ao tentarmos compreender a forma como Michelet realiza essa operação torna-se necessário entendermos a forma como o francês filia-se aos princípios contidos na obra do italiano Giambattista Vico.
Vico foi considerado pelo próprio Michelet como seu único mestre. Há quem considere Vico é tido por alguns como o pai do historicismo alemão do século XIX. Todavia sua obra não se constituiu em um sistema fechado ou acabado, mantendo-se aberta a diversas interpretações e filiações. As inovações propostas pelo italiano são diversas e complexas, de modo que exploraremos aqui os princípios contidos na Ciência Nova que são necessários e elucidativos para a compreensão da forma como Michelet constrói sua concepção de tempo histórico.
Vico busca fundar as bases de uma ciência que, combinando história e filosofia, busque a natureza dos homens e das nações. E, nesse sentido, busca historizar a natureza e os próprios homens. O mundo social, segundo ele, é obra dos homens, logo sua compreensão passa necessariamente pelo entendimento humano da razão humana. Assim sendo o italiano deseja analisar a raça humana como um indivíduo. Dessa forma a análise viquiana se desenvolve, tomando como base que a história passaria por três etapas, uma era dos deuses, permeada por linguagens cifradas e esotéricas ( a poética viquiana), outra dos heróis e por último a dos homens. Essa dinâmica traduziria a chamada história ideal proposta por Vico. Desse modo percebe-se, ainda, a associação dessa dinâmica à Providência, que estaria por trás da trajetória dos homens e seria a guia das ações humanas. A análise viquiana alterna-se entre os costumes dos gentios, do mundo civil e humano e uma concepção cíclica na qual a “evolução” dos homens e da razão os levaria fatalmente a um novo estágio de barbárie, semelhante àquele inicial, quando se separaram os gentios do povo hebreu.
Um aspecto importante de ressaltar da obra de Vico e que é apropriado por Michelet é o caráter orgânico da sociedade. É nesse sentido que deve-se buscar a compreensão das múltiplas facetas da vida humana, considerando impossível dissocia-las e isola-las de seu conjunto.
Vejamos, pois, como Michelet, apropria-se dos conceitos da Ciência Nova ao construir seu método de análise histórica, no qual encontra-se a problemática do tempo que visamos investigar.
Michelet, assim como Vico, junto de seus contemporâneos busca fundar bases legítimas para o conhecimento histórico. Assim sendo sua análise parte dos homens do passado, da necessidade de se compreender o que foi a realidade desses através de suas ações, e não de uma instância metafísica que os guiaria em direção a seu destino. A vida desses homens seria então, na visão de Michelet uma luta constante entre a Liberdade, vista como possibilidade de criação, e a Fatalidade, que seria o encerramento das possibilidades e mesmo o fim da história. É pendulando entre esses dois pratos de uma balança que se desenvolveria o mundo humano.
O historiador francês escreve sua obra como herdeiro que é da revolução de 1789 e do século XIX no qual vive e morre. Esse período, de agitações, emergência de uma nova mentalidade na Europa, pode ser representado pela forma com que se desenvolve a narrativa de Michelet. Por um outro lado o autor visa uma verdadeira imersão do seu leitor na atmosfera dos fatos e eventos que visa narrar. Dessa forma, alternando sobrevôos e detalhamentos a obra de Michelet visa tentar apreender os múltiplos aspectos daquela realidade que, se não fosse pela operação histórica encontrar-se-ia trancafiada no passado.
Desse modo acreditamos ser mais prudente não caracterizarmos o tempo histórico proposto por Michelet como algo singular. Trata-se, na realidade, de tempos históricos que se alternam entre a própria dimensão individual das personagens envolvidas naquele processo e a dimensão desse processo de um modo mais geral, de suas possibilidades e caminhos a trilhar. Assim sua narrativa toma por forma o tom e mesmo o ritmo dos acontecimentos sobre os quais discorre. É o próprio Michelet que pode nos ajudar a compreender a forma como sua mente astuta e complexa opera: Datamos assim curiosamente, minuciosamente, os homens e as questões, e os momentos de cada homem.[3] E seguindo essa linha, sua obra visa uma história da nação francesa, ligando-se necessariamente nessa nação a tradição revolucionária que ecoou durante todo o século XIX na França.
Assim sendo, com uma narrativa envolvente e em ritmos alternados, com detalhes muitas vezes fatigantes, Michelet constrói sua concepção de tempo histórico, um tempo não linear, não evolutivo, não progressista. Pela complexidade do problema torna-se relativamente fácil enunciar o que não seria esse tempo enunciado por Michelet. Outrossim podemos configura-lo como o ponto de confluência entre os diversos tempos que Michelet apreende das sociedades humanas, seja o tempo individual, da consciência dos homens, seja o tempo processual, muitas vezes acelerado dos acontecimentos nos quais os homens encontram-se envolvidos, seja ainda o tempo da luta constante entre a Liberdade e a Fatalidade que transpassaria por toda a história humana.
A
inda que seja impossível formular-se um conceito hermeticamente fechado e claro para o tempo histórico de Michelet, pode-se afirmar que como intelectual Michelet reinventou o tempo e a história[4].
[1] - MICHELET, Jules – Do Método e do Espírito deste Livro. In: História da Revolução Francesa, p.291.
[2] - MICHELET, Jules – Do Método e do Espírito deste Livro. In: História da Revolução Francesa.
[3] - Ibidem.
[4] - SALIBA, E.T. Michelet: as múltiplas faces de um reinventor da história. In.: Grandes Nomes da História Intelectual.
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