Um raio de Luz que se difrata: Federalismo - Parte II

sexta-feira, 19 de março de 2010




É o caso de lembrarmos agora das palavras de Benjamin Franklin, e acrescentarmos que, junto ao sol que nascia, nascia também uma idéia, o federalismo, que, imbricado com o republicanismo, alçou vôos altos, aterrisando inclusive, no século seguinte, no extremo sul do continente. Foi em princípios do século XIX que a nascente nação Argentina olhou para o exemplo norte-americano e se inspirou na construção de seu sistema político. Certamente que a aterrisagem das idéias federalistas em território argentino não se deu de forma simples, e também é certo que essas idéias não foram reproduzidas stricto sensu em uma realidade histórica e social distinta. Então como se deu esse processo de recepção e recriação do federalismo na terra do tango? Pode-se dizer que as idéias entraram no ritmo da dança, e se adaptaram, ou foram remodeladas, de acordo com as peculiaridades da Argentina.

            A recepção do federalismo lá não se deu de forma simplória. Ao contrário, devido às circunstâncias históricas e à herança colonial, o que ocorreu foi uma grande imprecisão da significação do termo durante, pelo menos, da Revolução de Maio de 1810 até a Constituição de 1853. A grande dificuldade de precisar o que foi o federalismo argentino na primeira metade do século XIX é potencializada por dois problemas, ou equívocos: o primeiro se refere à definição de alguns termos-chave, tais como: nacionalidade argentina, províncias, pueblos. A segunda questão, umbilicalmente ligada a essa, é que a historiografia Argentina tem, no mais das vezes, endossado interpretações que pecam por definições precisas desses termos e, portanto, geram definições imprecisas e pouco sólidas a respeito do federalismo à essa época[1].
            Pois bem, comecemos então pela Revolução de 1810. Desde fins do século XVIII e princípios do XIX haviam se formado na região do vice-reino da Prata, atual Argentina, grupos diversos que debatiam sobre a autoridade do domínio metropolitano espanhol. Esse questionamento foi gerado em parte pela convulsão interna e, além disso, não restam dúvidas da importância da inspiração das revoluções americana (1776) e francesa (1798) sobre o processo que se deflagrou a partir de Maio de 1810. E esse momento pareceu surgir quando, em 13 de maio de 1810, a chegada de uma frota inglesa em Montevidéu noticiou que Napoleão, imperador francês, invadira a Espanha. Estavam solapadas as bases e a autoridade do poder metropolitano. Foi então que se formaram três grandes grupos: de um lado aqueles que defendiam a necessidade de separar-se da Espanha e construir uma nação livre econômica e politicamente; de outro setor, mais conservador, apontava para continuidade dos laços que uniam a região à Metrópole para manter segura sua situação econômica e social; um terceiro grupo, mais eclético, apontava os caminhos de uma nação livre, mas no momento mais propício a tal iniciativa. A partir de 25 de maio o processo deflagra-se com vigor, a partir da criação da primeira Junta de Governo. Inicia-se aí, de fato, uma tentativa planejada de organização de um poder em substituição ao jugo espanhol. No ano de 1816 é finalmente declarada a independência das províncias rioplatinas:
“9 de julio de 1816 (...). Terminada la sesión ordinaria el Congreso de la Provincias Unidas continuó sus anteriores discusiones sobre el grande, augusto, y sagrado objeto de la independencia de los Pueblos que lo forman. Era universal, constante y decidido el clamor del territorio entero por su emancipación solemne del poder despótico de los reyes de España; los Representantes, sin embargo consagraron a tan arduo toda la profundidad de sus talentos, la rectitud de sus intenciones e interés que demanda la sanción de la suerte suya, la de los Pueblos representados y la de toda la posteridad. A su término fueron preguntados: Si querían que las Provincias de la Unión fuesen una Nación libre e independiente de los Reyes de España y su Metrópoli Aclamaron primero llenos del santo ardor de la justicia, y uno a uno reiteraban sucesivamente su unánime y espontáneo decidido voto por la independencia del País, fijando en su virtud la determinación siguiente: Nos los Representantes de las Provincias Unidas en Sud América, reunidos en Congreso General, invocando al Eterno que preside al universo, en el nombre y por la autoridad de los Pueblos que representamos, protestando al Cielo, a las naciones y hombres todos del globo, la justicia que regla nuestros votos: Declaramos solemnemente a la faz de la tierra que, es voluntad unánime e indudable de estas Provincias romper los violentos vínculos que las ligaban a los Reyes de España, recuperar los derechos que fueron despojadas, e investirse del alto carácter de una Nación libre e independiente del Rey Fernando VII sus sucesores y Metrópoli quedan en consecuencia de hecho y de derecho con amplio y pleno poder para darse las formas que exija la justicia, e impere el cúmulo de sus actuales circunstancias. Todas y cada una de ellas así lo publican, declaran y ratifican, comprometiéndose por nuestro medio al cumplimiento y sostén de esta su voluntad, bajo el seguro y garantía de sus vidas haberes y fama. Comuníquese a quienes corresponda para su publicación, y en obsequio del respeto que se debe a la Naciones, detállense en un Manifiesto los gravísimos fundamentos impulsivos de esta solemne declaración. (...)”.[2]

Uma vez liberta, a ex-colônia necessitava de definir sua organização política. Na ata acima citada aparecem os dilemas fundamentais que atravessariam a construção do Estado e da Nação Argentina. E é nos caminhos tomados para essa construção que podemos encontrar similitudes entre as experiências argentina e norte-americana. No que toca ao federalismo, veremos como o sentido do termo tomou rumos bastante semelhantes. Semelhantes, vale enfatizar, não iguais. Em parte, certamente, pela influência da recém ocorrida Revolução americana, mas certamente que uma dose dessas semelhanças pode ser atribuída à Fortuna. Sendo a república aceita com maior facilidade, restava agora decidir entre a união e a fragmentação. Essa última opção foi certamente um fantasma que rondou grande parte, para não dizer todos, os processos de independência latino-americanos.
Na Argentina, porém, esse fantasma atuou de uma forma bastante específica devido a um dos conceitos-chave acima mencionados: pueblos.[3] É através desse termo que poderemos entender a amplitude do choque entre autoridade local e governo centralizado, e é também daí que emergirá o conceito de província.[4] Para entendermos a amplitude e profundidade que o termo pueblos comporta na história argentina, é necessário pensarmos nos outros dois termos-chave já citados acima: nacionalidade e província. É na inter-relação – e não na simples oposição – desses três conceitos que se encontra a chave para a compreensão tanto do federalismo quanto da própria história argentina no século XIX, e, por que não, até hoje.
Em 1816, marco da independência, não há ainda claramente definida essa idéia da nacionalidade argentina. Tanto que a Ata acima reproduzida foi produzida noCongreso de la Provincias Unidas [que] continuó sus anteriores discusiones sobre el grande, augusto, y sagrado objeto de la independencia de los Pueblos que lo forman”. Fica claro, portanto, que as referências fundamentais naquele momento eram os pueblos organizados politicamente enquanto províncias e não uma nação argentina. Parece ser mais adequado falar-se das províncias platinas do que de uma Argentina à essa época. Por outro lado, mais adiante já podemos detectar um germe dessa nacionalidade que seria construída: “(...) en el nombre y por la autoridad de los Pueblos que representamos (...) es voluntad unánime e indudable de estas Províncias (...) investirse del alto carácter de una Nación libre e independiente (...)”.
Está, portanto, esboçado o grande dilema que perpassaria toda a história argentina e inquietaria seus intelectuais: como conservar a autonomia soberana dos pueblos e alia-los em um só corpo político. Um pouco dessas intrigas e dúvidas passaram, certamente também, nas cabeças dos pais fundadores norte-americanos. E visando solucionar essa questão, entre a Revolução de Maio de 1810 e o Pacto Confederativo de 1831, reuniram-se quatro assembléias visando produzir uma constituição, nos anos de: 1813, 1816 a 1819; 1824 a 1826; 1828. Todas elas foram rechaçadas por conter uma aspiração unitária, enquanto naquele momento as províncias aspiravam um alto grau de autonomia. Ainda durante esse período existiram diversas formas de organização de um governo central, desde a Primeira Junta até a Presidência em 1826.[5] Apesar das heranças coloniais distintas, os argentinos sentiam, à essa época o peso da grande tarefa a que se propunham, assim como os americanos sentiram no século anterior: construir um Estado Nacional. Ainda assim, mesmo conhecendo os textos dos federalistas norte-americanos e conhecendo sua experiência histórica, o jogo de forças e poder no rio da Prata àquela época levou a um caminho que nos EUA tinha fracassado: formar uma Confederação. Isso porque o fundamento e a base da soberania aparecem ligados aos pueblos, e a idéia de um bem comum, ou de uma res pública que unisse as províncias ainda não tinha força agregadora suficiente. Os interesses locais ainda mobilizavam mais do que um suposto interesse nacional. Uma tentativa de organização política adotada nesse período para solucionar a questão da soberania dos pueblos foi a criação dos Estados Provinciais. Essas unidades passaram a redigir suas constituições próprias que, no mais das vezes, primavam pela: “afirmación de soberania e independencia (...)”.[6] Pareciam pairar no ar as tendências à confederação.
Essa parecia ser a saída vislumbrada para criar um laço entre as províncias que seria útil tanto em termos de política nacional, quanto para evitar a fragmentação do antigo vice-reinado do Rio da Prata. Mas, como veremos adiante, eles compreenderiam mais tarde o sentido dos ensinamentos de Hamilton e Madison.
A partir do ano de 1828 iniciam-se debates e até mesmo enfrentamentos militares em que se opunham os princípios do localismo e do centralismo. Esse se refletia em um confronto entre a província de Buenos Aires, mais forte economicamente e centro político da região do Prata, e as províncias do interior. Essas últimas temiam ser “conquistadas” por Buenos Aires. Nas palavras de um observador, durante o período da Confederação (1831-1853):
La soberania de las provincias es absoluta, y no tiene más limites que los que quieren prescribirle sus mismos habitantes. Así es que el primer paso para reunirse en cuerpo de nación debe ser tan libre y espontáneo como lo sería para Francia el adherirse a la alianza de Inglaterra”.[7] 

            Destaca-se, assim a idéia de que mesmo durante a Confederação, período em que as províncias gozaram de bastante autonomia política, a idéia de que uma nação estava sendo gestada sempre permeou os pensamentos daqueles atores. Assim como os pais fundadores, alguns dos intelectuais e políticos platinos tinham um certo grau, o que é raro, de consciência dos processos pelos quais passava sua sociedade. As palavras acima citadas, escritas em 1832, em muito se assemelham às de Juan Bautista Alberdi relativas à Buenos Aires em 1853, significando, talvez, que a organização política pouco mudara nesse período:
“(...) asignándose facultades nacionales, en vez de organizarse en provincia, se organizo en nación y las otras provincias, copiando a la letra la planta de su gobierno en virtud Del principio de igualdad aceptado en tratados por Buenos Aires, dieron a luz catorce gobiernos argentinos, de carácter nacional por el rango, calidad y extensión de sus poderes”.[8]

            Como veremos adiante, Alberdi destacar-se-ia como intelectual ao mesmo tempo crítico e propagador do federalismo na Argentina. Mas por ora, vejamos o que se deu entre os anos de 1831 e 1853. O ano de 1829 marca a subida de Juan Manuel Rosas ao poder como governador de Buenos Aires. Típico representante dos interesses aristocrático, o caudilho Rosas ocuparia o poder até o dia 3 de fevereiro de 1852, quando é derrotado na Batalha de Caseros.[9] Durante esse período Buenos Aires parece dominar, tacitamente, as províncias interioranas. Tornou-se uma espécie de modelo, como disse Alberdi, de exercício de soberania, além de concentrar o controle dos recursos econômicos da região do Prata.
Antes de podermos falar de um federalismo num sentido pós-Filadélfia, o que vigorou naquele período seria um confederacionismo. E essa é uma distinção importante de ser feita. Após 1810 algumas aspirações de federalismo enquanto centralização foram esboçadas, mas, como vimos, foram derrotadas. Ainda assim, a partir das constituições provinciais a república é tomada como forma ideal de governo, e torna-se, então, possível associar novamente, como nos EUA, república e federalismo. A união parecia pairar no ar. Parece que as palavras de Madison e Hamilton encontrariam ecos através dos intelectuais da “Associação de Maio”. Os raios do federalismo, de que falava Benjamin Franklin, após ter difratado-se na terra do tango, parecem agora tomar as formas que Publius defendia. E os principais responsáveis por essa transformação no plano das idéias parecem ser os intelectuais opositores ao governo Rosas, três em especial: Estebán Echeverría, Juan Bautista Alberdi, e Bartolomé Mitre. Abarcando perspectivas distintas, os três reuniram-se na “Associação de Maio”, que retomando os valores da independência de maio de 1810, criticava os rumos do governo Rosas e apontava os caminhos para continuar a construção do Estado Nacional argentino. [10]
Interessa-nos aqui, especialmente o pensamento de Alberdi, uma vez que foi o que mais ruminou as idéias.[11]O Federalista, além de ter sido o principal formulador da constituição argentina de 1853. Em sua obra Fundamentos da Organização Política da Argentina, o pensador faz uma retomada histórica da constituição política da Argentina, além de analisar, cuidadosamente, as diversas constituições experimentadas ou não em seu país. Expõe também os principais pontos de duas constituições pelas quais demonstra admiração: a do Chile e a do estado da Califórnia nos EUA. Nessa obra Alberdi mostra também ser um grande conhecedor da teoria política que serviu de base para a emergência da modernidade política.
Refletindo sobre o dilema fundamental da Argentina, o pensador afirma: “(...) problema mais difícil que a organização política da república tenha apresentado até hoje – que consiste em determinar se a forma unitária ou a federativa será a base mais conveniente para a coordenação de seu governo geral – (...) essas duas bases têm antecedentes tradicionais na vida anterior da República Argentina que ambas coexistiram e coexistem formando como que os dois elementos da existência política dessa república”. Superando uma perspectiva dicotômica, Alberdi já se esquiva do equívoco que grande parcela dos historiadores argentinos cometeriam posteriormente, ao considerar que é a partir da coexistência e não da oposição de unitarismo e federalismo que deve se constituir a nação argentina.
Após a queda do caudilho Rosas em Caseros, novamente estava posta em questão a organização do Estado argentino. Novo ponto de partida? Talvez sim...A partir de então o liberalismo passa associa-se ao republicanismo e ao federalismo para dar forma à organização política engendrada na Constituição de 1853. Não por mera coincidência seu artífice maior foi Alberdi. Vejamos, pois, como se expressam esses três conceitos no texto constitucional.
Interessou-nos aqui, a respeito da Argentina, em especial, o momento de construção, fundação de um corpo político organizado. Momentos permeados de incertezas e indeterminações, nos quais caminhos distintos se colocam, e escolhas são feitas. Apesar de algumas divergências, a nosso ver, as escolhas feitas pelos argentinos refletem muito dos raios do federalismo nascido na América no século XVIII. Mas esse reflexo se dá como se a luz do federalismo norte-americano estivesse passado pelo prisma das experiências históricas argentinas. Ou, em outras palavras, é como se o federalismo tivesse dançado no ritmo do tango argentino. Dança essa que foi cheia de aprendizados e passos errôneos, como de costume...

[1] Ver: CHIARAMONTE. p.98.
[2]Apud: http://www.fmmeducacion.com.ar/Historia/Documentoshist/00documentoshist.htm
[3] É muito difícil encontrar uma tradução que contenha toda a significação englobada por esse termo, daí a opção de mante-lo na língua espanhola.
[4] Cabe salientarmos que não se trata de um jogo de forças dicotômico, mas sim de uma rede mais complexa de disputas de poder em torno dos interesses locais e dos interesses daquela que viria a ser a oligarquia da Republica Argentina. Para mais ver: FRONDIZI. Federalismo em la República Argentina. 
[5] Ver: CHIARAMONTE. p.82. Uma figura bastante intrigante desse período entre 1810 e 1831 parece ser Mariano Moreno, bastante influenciado pela revolução francesa e Roussau. Ver: FRONDIZI. p.30
[6] CHIARAMONTE. p.116
[7] FÉRRES, Pedro. El Lucero. Apud: CHIARAMONTE. p.121.
[8] Apud: CHIARAMONTE. p.121.
[9] Ver: CHIARAMONTE e FRONDIZI.
[10] Um contraponto aos argumentos desses intelectuais é encontrado em Sarmiento. Ver, em especial: MITRE.
[11] Para uma análise dos outros dois pensadores ver: CHIARAMONTE e FRONDIZI. Sobre ruminar idéias ver: STARLING.

1 comentários:

Anônimo disse...

Legal Valeu

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